Disritmia
E das entranhas da cidade surge o carnaval. Nessa cidade voraz e impiedosa com nome de santo. Seu grito ensurdecedor é um convite à consumação dos desejos, um encontro com sua natureza mais crua, um encontro, sem retorno, com o próprio encontro.

E se a cidade tem um orgasmo, é o carnaval. Um impulso ardente incontrolável. Um canto que ecoa suas dores, sonhos e desejos em um mesmo acorde. Um arco-íris que faz das cores uma razão dissimlulada de ser tudo aquilo que se pode ser.

E sua desarmonia nos conduz à intensidade de suas contradições, extrapolando os limites da liberdade expressiva e o recalque da moralidade cívica.

E em ritmo frenético e energia contagiante, o suor é compartilhado e as emoções convertidas em gestos, toques, beijos e fluxo. Fluxo constante. Negligenciando sobriedade e moderação.

E sua desenvoltura visceral é revelada neste espaço mimético de confluências epifânicas, dando amparo às dores oferecidas pelo mundo.

E a simbologia em seu apogeu, mescla a crisma ao pecado, os ídolos às desilusões, os chicotes às grinaldas, para que então, sem mais nem menos, o par de chifres de um demônio inofensivo partilhe o beijo de uma freira desavisada até que o batom vermelho lhe borre os beiços e o pescoço por completo.

E Macunaíma põe-se a sorrir vendo os desvios tornarem-se virtudes da alma ao deixar tudo que é desconfortante, um pouco mais confortável.

E de gole em gole penetro neste delírio, possuído pelas promessas de ruptura desta opaca realidade que nos oprime.

E assim fui. Fui a cantar pelo carnaval. Fui dar as mãos ao que antes era desconhecido. Fui no sol, fui na chuva, fui no asfalto.

Fui no asfalto catar lixo, pegar caranguejo, conversar com urubu.