Carandiru
Sanguinário
Um velho dicionário
Daqueles que deus fala
E te esquece
Solitário

Não importa
Saber o que já fez
Faca de cadeia
No pescoço outra vez

Tudo amontoado
Um santo com um rato
Apertado ali debaixo
Coração pisoteado

Já venceu meu tempo?
Nem eu sei
Quer saber...
Em minhas contas, foi-se mais um mês

Quantos foram os livros?
A palavra de Jesus
Mata tanto por aí
Veste touca e capuz

O perdão não existe
Para homem que é santo, inocente
Vítima é o pobre
Só mais um delinquente

Abro a porta de uma cela
Ouço o som da sua dor
Sinto cheiro da vingança
Da agonia, o sabor

Lugares como este
Choram nossos erros
Sangram os horrores
Afogam o futuro
Ignoram nossas flores
Sabem como é
Cada regra indecente
Necessária para vida
Condição de penitente

De olhos bem atentos
Boca fechada, encruzilhada
Eu não sei, eu não vi
Lá vem mais uma cilada

Corpos magros, gritos fartos
Odor forte, persistente
A fome é viril
Destemida e recorrente

Vocabulário indecifrável
Gíria de malandro
Da vida a se esquivar
É você? Por favor,
Alguém que possa confiar

Cicatriz de dorso inteiro
Sangue bem viscoso,
Olhar meio confuso
Ódio impetuoso

Gota cai da chuva
No vigia da masmorra
Virou choro de detento
Antes mesmo que ele morra

No xadrez só calafrio
Febre intermitente
HIV, tuberculose, pneumonia e rubéola
Homem injustiçado, preto de favela

Me lembro do diário
A composição de um prisioneiro
Abandono, miséria, ódio
Sofrimento, desprezo, desilusão,
Ação do tempo
Eu acrescento angústia, rancor
A recitar um juramento

Cansado de esperar
O que poderia acontecer
Melhor eu me cuidar
E ver outro amanhecer

Fissura incessante
Eu já sei no que vai dar
Sangue derramando
Hora da chacina

Lamento a juventude
Desdém e escárnio
Pomba branca fuzilada
Quem quer paz de verdade?

Já não há mais tempo
Sem desculpa ou perdão
Pathos social
Lava a alma com sabão

Sem remorso ou desgosto
Despeça-se, ajoelhe-se
Se prepare pra morrer
A bala é injusta,
Existe uma pra você

Olho para o lado
Vejo a face da morte
Um olhar de desespero
Ó meu Deus,
Não conte com a sorte.

Lágrimas de mães
Recordar é necessário
111 mortos
Em um país sem glossário



-------- Rodrigo Koraicho

"Reconheço nas fotos a busca do inusitado, da solidão, do vazio e a ausência do homem que habitou aquele espaço.

Suas imagens têm uma garra e perplexidade que se sustentam por si próprias."


— Hector Babenco